Dando sequência às matérias especiais sobre os serviços públicos de Gastroenterologia do Rio de Janeiro, chegou a vez do serviço de Gastro e Hepatologia do Hospital Universitário Gaffrée e Guinle (HUGG), localizado na Tijuca, que se consagrou como uma das maiores instituições de promoção da saúde pública do mundo.

A história foi contada com a colaboração do chefe do erviço, Professor Carlos Eduardo Brandão Mello, que ao nos receber no HUGG também nos cedeu o livro A História do Hospital Gaffrée e Guinle, de autoria do Professor, Médico e Historiador, Maurício Ribeiro Borges.

Dr. Brandão é livre docente pela UNIRIO, responsável pelas disciplinas de Clínica Médica e Gastroenterologia na Escola de Medicina e Cirurgia (EMC), Chefe do Ambulatório de Gastroenterologia e Doenças do Fígado e membro titular da Academia Nacional de Medicina, desde 2015, onde ocupa a cadeira de número 10.

Inaugurado em 1º de novembro de 1929, por Cândido Gaffrée e Guilherme Guinle, o HUGG foi construído em uma área de 21.900 metros quadrados. Era o maior e mais moderno hospital da então capital federal, com capacidade para 320 leitos, distribuídos por 12 enfermarias e quartos particulares, ambulatórios para 1.000 atendimentos diários, 12 salas de cirurgia e 2 salas de parto.

Vista aérea do Hospital Gaffrée e Guinle, na rua Mariz e Barros / SANGLARD, G. e COSTA, R. da Gama-Rosa: Directions in Hospital Assistance in Rio de Janeiro (1923-31)
Fachada principal / SANGLARD, G. e COSTA, R. da Gama-Rosa: Directions in Hospital Assistance in Rio de Janeiro (1923-31)

A sua história está intimamente ligada à reforma sanitária liderada pelo respeitado sanitarista Carlos Chagas, à frente do antigo Departamento Nacional de Saúde Pública, que na época lutava para combater o surto de doenças venéreas, principalmente a sífilis, considerada flagelo nacional na década de 1910. A doença crônica, quando não matava, degenerava a capacidade física e mental.

Assim sendo, o Hospital Gaffrée e Guinle foi criado voltado à assistência médica e à pesquisa científica para a sífilis. Na época, faltavam hospitais gerais destinados a atender a um grande público empobrecido e os que existiam ofereciam atendimento restrito.

“O Brasil, senhores, necessita de outros e modernos hospitais, que possam atender a condições permanentes e a eventualidades epidêmicas inevitáveis”, disse Carlos Chagas em discurso no Derby Clube do Rio de Janeiro, em 1918, conforme relatado no livro “A História do Hospital Gaffrée e Guinle”.

A bela e imponente arquitetura do HUGG, de autoria do jovem arquiteto natural do Rio de Janeiro, Adelstano Porto d´Ave, chama atenção até os dias de hoje, assim como a tradicional torre da caixa d´água, com cerca de 50 metros de altura.

Hospital Gaffrée e Guinle durante as obras de construção. Em destaque ao fundo, a torre d´água/ SANGLARD, G. e COSTA, R. da Gama-Rosa: Directions in Hospital Assistance in Rio de Janeiro (1923-31)

Além disso, o Hospital Gaffrée & Guinle e sua capela em adoração à Nossa Senhora da Conceição, representam um dos melhores exemplares do estilo neocolonial de inspiração franco-hispânica da cidade do Rio de Janeiro.

Outro diferencial da bela arquitetura são os vitrais que homenageiam três grandes nomes da ciência: Paul Ehrlich,  Oswaldo Cruz e Louis Pasteur. Os vitrais estão no pavilhão, antigo biotério.

Já no saguão principal, estão os imponentes bustos de bronze de Candido Gaffrée, Eduardo Guinle e do Professor Fioravanti Alonso Di Piero, ao centro.

“O projeto do Hospital Gaffrée e Guinle demonstrava um caráter arquitetônico misto, ou seja, duas tendências históricas de arquitetura hospitalar são observadas em harmonia estrutural: a pavilhonar e a de monobloco. Observamos a estrutura pavilhonar, de influência européia e dominante do século XIX, nos menores prédios reservados ao biotério, capela, casa do diretor, garagem e oficinas; e a arquitetura em monobloco vertical, de influência norte-americana, predominantemente a partir do período entre as grandes guerras, que pode ser observada no prédio central com quatro pavimentos, reservados às enfermarias, com separação em alas masculinas e femininas, e serviços hospitalares em geral, além de um pavimento para solário. Digna de nota foi a preocupação com a separação e a aeração dos departamentos e instalações hospitalares.” (Livro: A História do Hospital Gaffrée e Guinle)

O pioneirismo não só do projeto arquitetônico, como de todo trabalho de assistência médica, refletiu no sucesso que o HUGG foi conquistando ano a ano após a sua inauguração.

Na época de 1946 a 1957, com o advento da antibioticoterapia, o HUGG passou a direcionar também as suas atividades para o diagnóstico e tratamento do câncer. Teve a oportunidade de abrigar o Serviço Nacional do Câncer com o seu órgão de suporte executivo, o então Instituto do Câncer, atual INCA.

Já em 1966, o HUGG foi incorporado à Escola de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, reconhecida como a 2ª faculdade de medicina fundada na Cidade Maravilhosa e a 4ª no Brasil.

Em junho de 1979, a Escola de Medicina e Cirurgia passou a integrar a UNIRIO, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, fazendo parte de seu Centro de Ciências Biológicas e da Saúde (CCBS). Tal fato contribuiu para que o HUGG se tornasse, nos anos 80, o 1º hospital brasileiro especializado no tratamento de HIV.

“Isso fez com que professores, médicos e estudantes no então HUGG reencontrassem a vocação de luta contra as doenças sexualmente transmissíveis frente à Síndrome de Imunodeficiência Adquirida (AIDS), projetando novamente o nome do Hospital no cenário nacional e internacional. Assim, a história nos mostra que, da Sífilis à AIDS, enfermidades que se caracterizaram em épocas distintas, por meio de sinais e de sintomas, carregando preconceitos e modificações de costumes, o HUGG marcou e marca a história da medicina no Brasil como um território de abnegados, celeiro de ideias e berço de talentosos profissionais em saúde pública. São esses que fazem o HUGG destacar-se em ações de ensino, pesquisa, diagnóstico e tratamento” (Palavras do antigo Reitor da UNIRIO, Luiz Pedro Jutuca, na mensagem de abertura do livro)

Em 1983, o Serviço de Clínica Médica B do HUGG, tornou-se pioneiro, no Rio de Janeiro e no Brasil, ao montar um Serviço de Excelência para pesquisa, ensino, acolhimento e tratamento multidisciplinar de pessoas com Aids.

No mesmo ano, a Disciplina de Clínica Médica A da Escola de Medicina e Cirurgia, da UNIRIO, começou a ser responsável pelo ensino, pesquisa e extensão das seguintes áreas: Gastroenterologia, Hepatologia, Endocrinologia e Doenças da Nutrição.

Os marcos seguintes foram: em 1984, quando o hospital passou a ser chamado oficialmente de Hospital Universitário Gaffrée e Guinle (fruto da padronização nominal dos hospitais federais de ensino no Brasil); em 1987, quando o HUGG foi credenciado como “Centro Nacional de Referência em AIDS”; em 1989, ano em que passou a ter um Centro de Testagem e Aconselhamento Anônimo, hoje chamado de Centro de Orientação e Apoio Sorológico; e em 1993, ano em que foi criado o Ambulatório de Doenças do Fígado, que em 1997, se tornaria Centro de Referência Municipal e Estadual junto às secretarias municipal e estadual de saúde do Rio de Janeiro, inclusive com a autorização para a dispensação de medicamentos excepcionais para o tratamento das hepatites virais.

Podemos dizer que da década de 90 até os dias atuais, o Hospital Universitário Gaffrée e Guinle, integrado ao SUS, presta serviços de atenção básica e assistência médico-hospitalar de média e alta complexidade e oferece ao público, atendimento em diversas áreas, entre elas a Gastroenterologia e Hepatologia, a qual também está incluída no Programa de Residência Médica, com outras 42 especialidades. Desde 2012, o HUGG passou a funcionar sob a administração da EBSERH (Empresa Brasileira de Recursos Hospitalares), que faz parte do Programa Nacional de Reestruturação dos Hospitais Universitários Federais, buscando a sustentabilidade financeira e orçamentária e a recomposição dos quadros de recursos humanos dos hospitais universitários.

Agora, falando, especificamente, sobre como a área de Gastroenterologia e Hepatologia cresceu no HUGG é preciso regressar à década de 80.

O 1º chefe do serviço foi o Professor de Clínica Médica, Mário Barreto Corrêa Lima. Outros pioneiros no setor foram: Prof. Gilberto Nagle, Prof. Álvaro Vilhena, Dr. Jário Chefer, Dr. Marcial Portela, Dra. Rosi Schmidt, Dra. Maria da Cunha Gomes, e Dra. Marília de Abreu Silva, que trabalhou no HUGG até 2021. Os demais professores se aposentaram no início da década de 90.

Dr. Carlos Eduardo Brandão, atual chefe do Setor, e formado pelo HUGG em 1979, recorda que ele e Dra. Marília trabalharam intensamente para o crescimento do serviço, que ganhou notoriedade maior na década de 90.

“Quando eu comecei a trabalhar no Gaffrée já tinha sido aluno da casa. Vim como professor, em 1988. Nessa época, o serviço era marcado pela gastroenterologia convencional, ou seja, atendimento a gastrites, úlceras, má digestão e doença do refluxo. O ambulatório só funcionava pela manhã e eram cinco ou seis salas de atendimento. Então, na verdade, existiam alguns professores da cadeira de Gastroenterologia, que já estavam na casa há algum tempo, e que além da endoscopia, atendiam no ambulatório de gastroenterologia. Não era um ambulatório muito pesado, contabilizavam 20 a 25 atendimentos por dia. Quando comecei a trabalhar e dar aulas, ficava na enfermaria de Clínica Médica, mas devido à minha formação, fazia também o ambulatório de Gastro. No entanto, dentro do Serviço, sempre tive um interesse maior nas áreas de doenças do fígado, via biliar e vesícula. E nesse início dos anos 90 surgiram algumas doenças mais especificas do fígado, como a hepatite C. Então, eu comecei a fazer o ambulatório para atender pacientes que apresentavam hepatites virais.”

Pesquisador entusiasmado, Dr. Brandão, após ter concluído sua tese de mestrado sobre hepatite B, em 1990, iniciou, no ano seguinte, o seu doutoramento na área de hepatite C, algo extremamente novo, e que veio justamente ao encontro das novas necessidades do ambulatório.

“Comecei a fazer o ambulatório só de hepatologia. E cresceu muito pois o vírus não era conhecido. Antigamente, a gente dizia que aquela forma de hepatite era chamada: não A e não B. E começou a surgir, no início dos anos 90, uma nova modalidade: a hepatite C. O paciente ia ao banco de sangue fazer doação e durante a triagem descobria-se a hepatite C. Naquela época, chegamos a ter uma positividade de quase 2% da população, sendo que estávamos falando de uma população de cerca de 6 milhões de cariocas. Então, quando os doadores eram considerados inaptos, o hospital os encaminhava para o nosso ambulatório para passarem por uma investigação”, recorda.

Com a demanda cada vez mais crescente, o serviço de Gastro e Hepatologia que ocupava cinco salas, passou a ter 12. Dr. Brandão relembra que contou muito com a ajuda dos alunos da pós-graduação para dar conta do atendimento:

“Até o final dos anos 90, o que a gente tinha a oferecer aos pacientes era uma droga chamada interferon. O paciente deveria tomar 3 injeções por semana e isso curava 20% da hepatite crônica. Depois, em 99, quando fui presidente do Grupo do Fígado do Rio de Janeiro, consegui junto com o ex-presidente do GFRJ, Dr. João Luiz, do Hospital de Bonsucesso, que o Governador do Estado e o então Secretário de Saúde comprassem o interferon e uma droga nova que estava surgindo, a ribavirina, para oferecer aos pacientes do Rio de Janeiro. Só depois que o Ministério da Saúde passou a oferecer gratuitamente essas medicações.”

Segundo Dr. Brandão, a partir dos anos 2000, com o tratamento eficaz de hepatite C, o ambulatório passou a chamar a atenção da indústria farmacêutica, que se interessava em trabalhar com novos fármacos. Assim, ele recorda que foi convidado diversas vezes para testar novas drogas para hepatite C, o que ao mesmo tempo impulsionou o crescimento do serviço, uma vez que estes novos laboratórios farmacêuticos traziam recursos para a expansão do ambulatório.

“Os projetos de pesquisa eram todos eles financiados pela própria indústria farmacêutica. Isso nos trouxe recursos, permitindo aparelhar o serviço através da compra de insumos, contratação de pessoal e realização de obras físicas. Passamos, dessa forma, a ter uma estrutura física melhor. Posso dizer que, ao longo dos últimos 20 anos, de 2000 até 2019, antes da pandemia, eu participei de quase todos os projetos de tratamento de novas drogas para hepatite C. Funcionávamos com um centro de pesquisa, com uma enfermeira dedicada ao projeto de pesquisa, uma biomédica só para fazer a seleção dos métodos. Enfim, crescemos muito a nível nacional e esse serviço se tornou uma referência da Secretaria Municipal e Estadual de Saúde e do próprio Governo Federal. Esse hospital, por meio do Ministério da Saúde, libera hoje medicamento de forma gratuita para o nosso paciente. Ou seja, o Gaffrée é um polo de atendimento de pacientes com doenças do fígado e passou também a ser um polo de dispensação desses medicamentos de alto custo, os mesmos que eu acabei testando ao longo dos últimos 20 anos. Podemos concluir que o tratamento que era feito com 3 injeções por semana, passou a ser com 1 injeção por semana, e hoje consiste em 1 comprimido por dia, durante 8 a 12 emanas. Antes, o paciente curava 20%. Hoje, praticamente 98% saem curados”, conclui Dr. Brandão.

Falar da história do Serviço de Gastro e Hepatologia do HUGG é falar do crescimento de um ambulatório que passou a tratar pacientes que chegavam com novas doenças inflamatórias intestinais (doença de crohn, retocolite ulcerativa, etc). E para atender às demandas, chegaram a Profa. Dra. Marcia Lyrio e a Dra. Alessandra Mendonça de Almeida.

“Nos últimos anos, a nossa equipe recebeu novos médicos que vieram trabalhar em regime jurídico. Na Gastroenterologia, atendemos pacientes com doença do esôfago, gastrite, úlcera, doença inflamatória do intestino, entre outros casos. No ambulatório de fígado tratamos pacientes com cirrose, doença alcoólica de fígado, doença gordurosa, câncer de fígado e hepatite viral B e C. Então, antes da pandemia, estávamos com uma média de 60 a 65 atendimentos, por dia. Na pandemia, o número caiu pela metade pois o hospital teve que restringir a entrada de novos pacientes e direcionou as suas atividades para o enfrentamento da Covid-19”, enfatiza Dr. Brandão.

Hoje, com a redução dos casos de Covid, o serviço já voltou à normalidade, contando com cinco professores e cinco médicos contratados, no total.

A área de Gastro e Hepatologia do Hospital Universitário Gaffrée e Guinle (HUGG)  também cresceu em publicações e em financiamentos para projetos de pesquisa e projetos da FAPERJ. Desde 2012, desenvolve um Programa de Mestrado voltado para doenças do fígado, contando com a participação de ex-alunos da Residência e da Pós-Graduação, que logo se matriculam para fazer o Mestrado.

O Serviço conta, ainda, com uma enfermaria de Clínica Médica para pacientes que precisam se internar, além da área de Endoscopia, ligada à Direção do Hospital, mas que também conta com profissionais do Ambulatório de Gastroenterologia.

Ao longo de quase 100 anos, como hospital de venéreos, de clínicas ou de universitários, o Gaffrée e Guinle deixou a sua marca na história, como resume o atual Chefe do Setor de Gastroenterologia e Hepatologia, Dr. Carlos Eduardo Brandão.

“Então, é o encontro da sua história: a sífilis, uma doença infectocontagiosa do início do século passado, a AIDS, doença do final do século passado, depois a hepatite, e mais recentemente, a pandemia de COVID-19, já que o hospital ficou totalmente dedicado ao tratamento dos doentes nesse período pandêmico. Então, é um hospital que tem uma tradição muito grande na área de doenças infecciosas, contagiosas, na área da cirurgia, da tireoide, e é um hospital escola da UNIRIO. São muitos motivos para comemorarmos, no ano que vem, os 100 da fundação Gaffrée e Guinle, que foi criada em 20 de agosto de 1923 com a meta de construir um hospital voltado ao tratamento, diagnóstico e profilaxia da sífilis, como assim foi e muito mais alcançou”, ressalta Dr. Brandão.

STAFF ATUAL:

Chefe do Serviço- Prof.  Carlos Eduardo Brandão

Profa. Marcia Lyrio

Profa. Alessandra Mendonça de Almeida

Profa. Cibele Franz

Dra. Marcia Amendola Pires

Dra. Roberta Ceres

Dra. Evelin Chimen

Dra. Alexandre Lachan

Dra. Juliana Lua

ESTUDO E PESQUISA:

Programa de Residência Médica

Programa de Pós-graduação Latu Sensu em Gastroenterologia

Programa de Pós-graduação Stricto Sensu (Mestrado em Doenças do Fígado)

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